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Desabafo de uma surda chamada Andréia - parte II

sexta-feira, maio 31, 2013


Ao terminar de escrever o desabafo de Andréia, enviei-lhe por e-mail para que ela aprovasse a publicação. No e-mail fiz algumas perguntas sobre seus pais e outros pontos que não havia entendido. Ela me retornou outro e-mail, mais detalhado, já com autorização para publicar ambos. Vou dividir com vocês o desabafo dela, talvez alguém a indentifique ou talvez não.



Então ao reler a história que escrevi, percebi que faltava explicar algumas partes, para que as pessoas ao lerem, não interpretem de forma errada.
Ângela, você lida com surdos e sabe como é o preconceito que vem de ambos os lados, tanto dos surdos quanto dos ouvintes.
Mas acho importante esclarecer alguns pontos.

A respeito dos meus pais, eles me tiveram numa aventura, e minha mãe ficou grávida.  Ela tinha apenas quatorze anos e até parou de estudar. E na década de 80, minha avó paterna quis que eu fosse morar com ela, junto com minha bisavó e meu bisavô. Ainda não era muito aceitável a idéia de criar filhos com pais separados.

O fato é que tanto meu pai quanto minha mãe eram totalmente irresponsáveis.
Minha mãe foi morar na casa da minha avó logo depois que nasci.  Eu quando tinha mais ou menos seis meses de idade,  tive meningite. Entrei em coma.  Os médicos disseram para minha avó providenciar o caixão porque eu não havia esperanças de que eu saísse viva do coma. Mas eu sobrevivi.

Meus pais nunca ligaram pra mim. Já me desprezavam naquela época.

O tempo foi  passando, fui crescendo e minha bisavó que ficava comigo, percebeu que eu não atendia os adultos da casa. Percebeu que eu não escutava. Só que minha avó trabalhava e achava que era só falta de atenção.

Aos cinco anos, minha bisavó e meu bisavô já me ensinavam a ler e escrever em casa. Mostravam algumas figuras do gibi da Mônica  ou do jornal. Eles repetiam pra mim. Pegavam no meu queixo e faziam com que eu olhasse para eles, para poder ver a articulação dos lábios e repetir as palavras. Eles escreviam pra mim também. E assim fui aprendendo. Sempre tive gibis, jornais e livros em casa.  Minha avó dizia que a leitura era a porta da mente. Que quanto mais eu lesse, mais iria aprender. Que era por isso que eu tinha que aprender a ler. E até hoje minha casa é abarrotada de livros. Rsrsrsrsrsrsrs.

Nesta época eu entrei na pré-escola.  Aí esta falta de audição ficou clara. A professora tinha percebido e comentou com minha avó, que procurou um otorrino na capital de SP, onde iniciei o tratamento. Fiz muitos exames, até que a deficiência auditiva foi comprovada: Orelha Direita com perda profunda e Orelha Esquerda com perda severa a profunda.

Ao comprovar a minha deficiência, meus pais que já não eram presentes, começaram a me maltratar mais ainda.

Eu apanhava muito por não ouvir, não entender as coisas que eles queriam. Às vezes eles brigavam entre si e me culpavam por ter nascido. Por ter estragado a vida deles. Sofri muito.
Nisso, eu conheci dois coleguinhas que faziam sinais pra se comunicarem comigo. Minha avó e meus pais fizeram de tudo para me afastar destas pessoas para que eu não aprendesse os sinais.
Eles diziam que eu tinha que aprender a falar e a escrever. E tinha que ser assim para que eu fosse alguém na vida. Eles repetiram essa frase por anos. Até hoje não esqueço.
E junto com o tratamento com otorrino, logo iniciei o tratamento com fonoaudiólogo  para melhorar  minha fala, que na época era muito ruim. As pessoas não entendiam o que eu falava.

Então chegou a matrícula para a 1ª série.  Minha avó fez questão de ir fazer a matrícula na escola.

Aliás, tudo na minha vida era minha avó quem resolvia. Meus pais sempre foram irresponsáveis em tudo. No trabalho, saúde, família. Nunca levaram nada a sério.
Minha avó disse que quando chegou à secretaria da escola e disse que eu era surda, a secretaria pediu pra aguardar e chamou a diretora.

A diretora veio e minha avó explicou que eu já era alfabetizada, já lia e escrevia. Que meu único problema era que eu tinha dificuldade para ouvir. A diretora respondeu para minha avó, que se eu não conseguisse acompanhar a escola, ela iria fazer minha transferência para APAE, que é a escola adequada para pessoas com problemas.

Minha avó disse que ficou muito chateada. E isso fez com que ela se empenhasse cada vez mais em me ajudar nos estudos. No local onde eu fazia fono, tinha aulas de reforço para surdos e ela me encaixou neste grupo de acompanhamento escolar.
Eu ia algumas vezes por semana. Mas com o tempo, passei a ir todos os dias.

E durante o tratamento com fono, iniciei também a adaptação com aparelho auditivo. No meu caso, seria um aparelho na OE. Eu já tinha nove anos. O aparelho ajudou sim, a perceber alguns barulhos, identificar algumas situações sonoras.  Mas eu não gostava de usar. Minha avó brigava comigo dizendo que o aparelho era muito caro, (e era mesmo) naquela época estava no auge o aparelho auditivo. Eu tinha um da Widex (e tenho guardado até hoje. rsrsrsrsrs). Mas a minha avó pensava que eu ouvia tudo com o aparelho e não era isso que acontecia. O aparelho potencializava um pouco o que eu conseguia ouvir, mas perfeição na audição? Nunca!!!! Minha avó dizia que só queria o melhor pra mim, por isso ela trabalhava muito pra dar o melhor á família.

Minha mãe me levou algumas vezes no atendimento, mas ela não tinha consideração ás minhas dificuldades auditivas. Dizia sempre que eu havia estragado a vida dela. Quando completei 11 anos, minha bisavó faleceu. Ela era o meu chão. Aí, eu entrei em depressão e meu bisavô também. Minha avó sofria calada. Nesta época, minha mãe foi embora de casa, sem avisar ninguém.  Eu sempre soube que o casamento deles era péssimo, e isso não teve impacto na minha vida naquele momento. Eu estava muito mal por causa do falecimento da minha bisavó.

Tive que continuar o tratamento indo sozinha pra SP pegando o trem (antiga CBTU, que andava com as portas abertas). Aí enfrentei mais uma etapa difícil. Depois do falecimento da minha bisavó, as coisas pioraram muito em casa. Todos estavam sofrendo. Meu pai acabou sendo mais agressivo do que já era. Comecei a apanhar mais. Inclusive fiquei com uma sequela no joelho.

As relações familiares estavam indo de mal a pior. Minha avó se apegou ao trabalho para se fortalecer, mesmo já tendo dado entrada na aposentadoria. Quando completei quatorze anos, encerrei  meu tratamento com a fono. Já não aguentava mais. Embora a fono insistisse que eu precisava melhorar a minha fala, eu já tinha consciência de que não ia avançar mais do que já tinha conseguido. Hoje, minha fala é compreensível. Então pra mim, já me basta.

Nesta época prestei o Vestibulinho para  magistério. Fui aprovada e ingressei no curso. Me formei professora de educação infantil e séries iniciais de 1ª a 4ª série, hoje denominados como 1º ao 5º ano do Ciclo I. Meu tema da monografia foi sobre a inclusão do aluno surdo na classe regular de ensino. Visitei várias instituições de educação especial que atendiam pessoas surdas, e pude ver as diferenças e dificuldades enfrentadas nas escolas. Meu pai faleceu no ano passado devido a complicações geradas pela diabetes.
 
Minha mãe, sabe Deus, pelo mundo afora. Sou casada com um ouvinte, tenho uma filha ouvinte, e sinto que sou amada por eles.

Atualmente, sou professora efetiva da prefeitura de SP. Sou concursada. Em outros lugares já realizei alguns trabalhos como:

-  professora itinerante;
-  mediadora de cursos na área da inclusão;
- mediadora em HTPC em escolas;
- mediadora de grupos de familiares surdos, auxiliando-os a superar as dificuldades;
- professora voluntária e particular para surdos e outros.

Hoje, estou me aprofundando na  LIBRAS. Estou fazendo o curso para  Instrutor de LIBRAS. Um dia, LIBRAS me fez muita falta. Compreendo que me afastar das pessoas que sinalizavam comigo não foi o melhor pra mim. Mas isso se deve à falta de compreensão da cultura surda que naquela época era pouco divulgada.

Por isso hoje, sempre digo que a família tem sim seu direito de escolher o que é melhor pra criança surda. Porém, antes de qualquer escolha, precisa se apropriar de informações da cultura surda.

Se pode ou não usar aparelho auditivo, aprender a LIBRAS e tudo aquilo que faz parte do universo do surdo, para depois tomar uma decisão.
Apesar de todas as batalhas da vida, me considero sim, uma guerreira. Enfrentei tudo na esperança de que algo de melhor no futuro me esperava. A surdez, embora eu tenha sofrido muitos preconceitos, como:

- no trabalho;
- nas escolas onde trabalhe;
- alguns lugares públicos onde tinham pessoas sem preparo nenhum para lidar com pessoas surdas, etc.

O preconceito sempre esteve presente e lidar com isso me tornou forte e capaz de lutar pelos meus direitos. A incapacidade não está nos meus ouvidos. Eu faço tudo o que os outros ditos “normais” fazem. Então, não me sinto incapaz. Me sinto única e vencedora. Simples assim.”

Esta é uma história real, mas o nome da personagem foi trocada a pedido da mesma. Nenhuma foto será postada. Infelizmente as pessoas não entendem o sofrimento e angústias de uma pessoa surda.  Se Andréia vier a se revelar virtualmente, muitas pessoas a questionarão sobre a questão do implante, do aparelho, porque ela não fez isso ou aquilo... E não é isso que ela precisa. Ela tem sua opinião formada e pronto. O que importa é que agora ela casou, teve uma filha, trabalha, é concursada e quer adquirir fluência em LIBRAS. Isso sim é um exemplo de superação. Uma vencedora em todos os sentidos.




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3 comentários

  1. Querida Andréia, embora este não seja o seu nome, foi este nome que escolhi para não divulgar sua identidade. Eu quero lhe agradecer por partilhar sua história de vida comigo. Muito obrigada mesmo. São tantas as histórias, e são essas experiências vividas por diferentes pessoas em todo o Brasil que me fazem seguir adiante.

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    Respostas
    1. Angela sou mãe de um deficiente auditivo, no momento estou pesquisando a respeito. Minha dúvida é colocar apetelho auditivo ou não usar libras. Atualmente meu filho esta na escola e aprende libras. Como ele fez cinco anos, que é a idade que seu médico indicou o implante Barra tecnologia Bonebridge. A dúvida é vale a pena passar por tanta coisa cirurgia aparelho tão caro que o Sus esta começando a disponibilizar e manutenção com o tempo acaba ficando por conta própria. Me ajude de sua opinião. Obrigado abraço

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    2. Olá Rosângela, tudo bem? Obrigada por sua visita.
      Sim, depois de um tempo, a manutenção do aparelho é por sua conta. E não é nada barato.

      Difícil eu lhe dar minha opinião, pois não tenho ninguém surdo na família.

      Mas tenho amigos que fizeram o implante mesmo depois de adultos e se deram super bem.

      Há casos em que a criança foi implantada, e a manutenção do SUS demorou 3 meses para ajustar o aparelho da garota que estava sendo alfabetizada e começando a falar. Para quem está aprendendo a falar, 3 meses é muito tempo sem praticar. A criança acaba esquecendo e depois tem que recomeçar do zero.

      Mas assim, você tem condições de bancar a manutenção do aparelho?

      Porque a maioria dos casos que presenciei, todos que foram implantados gostaram de ouvir. Me disseram que ouvir coisas como: o vento, barulho da chuva, passarinho cantando, coisas simples para nó, para eles foi algo extraordinário. Muitos se emocionaram ao saber que a chuva, o vento tinham sons.

      E quando eu pergunto se um deles voltaria atrás para não fazer o implante, todos dizem: "Não. Eu gostei de ouvir. Quero ouvir pra sempre."

      Sobre a minha opinião, se fosse um filho meu, eu tentaria. Mesmo se não desse certo, tentaria. Num futuro próximo, você não vai ficar se culpando: "porque não tentei o implante?"

      Ficar nesse impasse não dá. E a medicina está muito avançada. As coisas na área da surdez só tem crescido.

      Espero ter ajudado. Se preferi privacidade, me envie um e-mail: angelabsuassuna@hotmail.com

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